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Pássaro azul

  Pássaro Azul É com a tinta da noite e os impulsos do coração que te escrevo A emoção que tua presença me inspira.  É na quietude das horas tardias, entre o arranhar e o lavar dos pratos,  Que te encontro na janela da minha alma,  Tua plumagem azulada refletindo o celeste dessa alma em paz.  Vejo-te no alto do mamoeiro, onde repousas majestoso em tua torre de contemplação,  És uma testemunha silenciosa do vento que adentra nesta casinha-mansão.  Ali, entre as folhas verdes e os murmúrios da brisa que acariciam os frutos dos teus desejos,  Tua presença é meu convite para olhar no espelho.  Mas como poderia descrever-te? Como outros poderiam te ver?  Sempre falo de ti e teus olhos negros cintilantes,  Mas quando apareces és tão singular, múltiplo e incerto,  Que nunca pareces com o desenho que fiz de ti!  E tenho de fechar meus olhos para ver-te!  - O Artientista Reflexões em 28 de abril de 2024.  Créditos da imagem: Vitória Régia Albuquerque da Silva (2024)

Theodor Koch-Grünberg: Povos Indígenas da América do Sul (Tradução do Alemão para Português)

O presente texto se apresenta como uma tradução meticulosa e atenciosa da obra derradeira de Theodor Koch-Grünberg - "Indianermärchen aus Südamerika" (1927), escrita em alemão, com o propósito de resguardar e partilhar a opulência das narrativas dos povos autóctones, numa prosa que anseia por desnudar um fragmento da profundidade e poesia inerente aos contos nativos, notadamente das paragens que abrangem atualmente o estado brasileiro de Roraima e a região que permeia Venezuela e Guianas. Boa leitura!


Theodor Koch-Grünberg - "Indianermärchen aus Südamerika"
(Tradução por J. G. da Silva)


Dedicatória 

Dedicado a Dorothea, Ernst e Elisabeth. 

Prefácio

O universo de contos dos indígenas sul-americanos é ainda pouco conhecido, tornando difícil reunir material suficiente para este pequeno volume. Grandes extensões do continente permanecem completamente inexploradas, e a extraordinária diversidade de línguas apresenta enormes desafios para uma compreensão mais profunda das riquezas espirituais dos nativos. O pesquisador depende, em primeiro lugar, daqueles que, além de sua própria língua, também dominam o espanhol ou o português a ponto de se fazerem entender, isto é, entre aqueles que estiveram mais ou menos tempo em contato com os colonizadores. Além disso, existe o risco de que, nesse contato, os nativos absorvam elementos estrangeiros e os tenham entrelaçado intimamente com suas próprias tradições, tornando muitas vezes difícil distinguir o antigo do novo, pois esses elementos estranhos nem sempre estão tão evidentes quanto nos "Contos de Grimm" dos povos indígenas chilenos. Além disso, nem todo nativo conhece ou pode recitar contos. Entre cem pessoas, talvez encontre-se apenas uma que possua esse dom, o qual é transmitido em determinadas famílias por tradição oral.

A Missão, cuja atividade secular é credora de material notável sobre a cultura e as línguas dos povos indígenas sul-americanos, falhou nesse campo, com poucas exceções. O missionário inglês Brett é praticamente o único que nos deixou uma extensa coleção de lendas de povos originários, mas devido à sua postura muitas vezes ortodoxa e às alterações "melhoradoras" que fez na recriação poética das narrativas indígenas, seu valioso material só pode ser utilizado com certa crítica. Algumas de suas lendas estão traduzidas para prosa a seguir.

Também o missionário, através de sua prolongada estadia frequente em uma tribo, em uma aldeia, e sua familiaridade com a língua local, é mais capacitado do que o explorador para preservar as tradições dos nativos. No entanto, ele enfrenta perigos aos quais pode sucumbir facilmente. Se ele for verdadeiramente imparcial e transcrever os contos como lhe são contados, seus informantes são, na maioria das vezes, também seus “discípulos”, que, por compreensível timidez, não lhe contam tudo, frequentemente concordam com ele e tentam embelezar suas histórias "pagãs" com toques biblicocristãos recém-aprendidos ou diluir histórias muito intensas para agradar ao seu “professor”.

Por muito tempo, a pesquisa dos mitos na América do Sul ficou estagnada. Somente na segunda metade do século anterior ela realmente começou a se fortalecer. Além do livro do missionário Brett sobre os mitos dos povos indígenas da Guiana Inglesa, merecem destaque as coleções do brasileiro Barboza Rodrigues sobre mitos, lendas e fábulas dos indígenas da região amazônica, bem como as narrativas tribais dos Bakairi, compiladas por Karl von den Steinen, que têm um caráter muito original, e as histórias Karajá de Ehrenreich, que apresentam importantes paralelos com mitos sul e norte-americanos. Recentemente, juntam-se a essas coleções numerosas lendas coletadas por Nordenskiöld entre as tribos do leste da Bolívia, a excelente e extensa obra do brasileiro Capistrano de Abreu sobre o mundo dos contos dos Kaschinaua, uma tribo indígena do oeste do Brasil, a grande coleção do destacado etnógrafo inglês Walter E. Roth sobre lendas e contos dos indígenas da costa da Guiana e, por fim, meus próprios trabalhos sobre os mitos e lendas de dois povos caribenhos da Guiana. Se adicionarmos a isso os mitos recentemente compartilhados pelo missionário holandês van Coll, de Suriname e Guiana, se torna a região da América do Sul mais ricamente explorada do ponto de vista mitológico. Este livro reúne uma gama diversificada de materiais. Mitos de criação e heroicos, que em parte provavelmente se originaram de mitos naturais, se alternam com contos simples, fábulas de animais e narrativas humorísticas. Magia e transformações de várias formas desempenham um papel nelas. Motivos individuais são frequentemente recorrentes, como o motivo da "visita ao céu", que ocorre da costa da Guiana ao Chile, assim como é amplamente difundido na América do Norte e se estende até o leste da Ásia, de onde provavelmente teve origem; assim como o "motivo dos gêmeos", que se encontra com características surpreendentemente semelhantes na saga heroica de diversas tribos americanas.

Além do humor, que revela a alegria do indígena em situações dramaticamente cômicas, existe uma imaginação florescente, que muitas vezes se eleva ao grotesco e, por vezes, ao sinistro, especialmente nos contos que, aparentemente, brotam de sonhos febris. Contudo, as narrativas a seguir, ao serem lidas, oferecem apenas um reflexo fraco de sua beleza original. É necessário ouvir as pessoas, como contam suas histórias tribais ao redor da fogueira, pelas quais têm tanto orgulho, observar como sua apresentação frequentemente adquire um ímpeto dramático; é preciso vê-los, como, em momentos emocionantes, repentinamente se erguem, gesticulando vivamente, levantam-se e, tremendo de excitação, permanecem ali, enquanto o brilho do fogo ilumina seus corpos belos, radiantes de tons avermelhados.

Stuttgart. Junho, 1919.

- Theodor Koch-Grünberg.

1. Como o Warrau veio à Terra

Numa era distante, os Warrau residiam numa região celestial, repleta de uma beleza singular. Naquele reino celeste, compartilhavam espaço apenas com os pássaros, alvo constante dos jovens caçadores.

Certo dia, um destemido guerreiro, chamado Okonorote, lançou sua flecha em perseguição a um pássaro. No entanto, a flecha errou o alvo e desapareceu misteriosamente.

Ao procurá-la, encontrou um buraco pelo qual a flecha tinha caído. Olhando através dele, vislumbrou nosso mundo, onde manadas de porcos-do-mato, numerosos veados e outras criaturas vagavam livremente pelas florestas verdejantes e savanas.

Percebendo que a abertura era suficientemente ampla para atravessar, decidiu criar uma corda ou escada de algodão para descer. Com o auxílio de seus companheiros, meticulosamente construíram a escada, uma tarefa que levou vários meses até sua conclusão, ajustando seu comprimento até que se encaixasse perfeitamente nas árvores abaixo. Firmemente amarrada, a escada foi sustentada por robustos suportes.

O destemido Okonorote iniciou sua descida. Uma tarefa perigosa, pois descia de um reino elevado a outro por uma escada frágil, vulnerável até ao sopro do vento.

Chegando lá embaixo, foi surpreendido pela abundância e diversidade da vida. Admirou, maravilhado, as criaturas quadrúpedes e sua majestosidade. Tudo parecia deslumbrante aos seus olhos.

Testemunhou os animais selvagens devorando sua presa e sentiu-se estimulado a caçar um dos grandes animais para saciar sua fome. Assim, disparou contra um jovem veado. Acendeu um fogo com dois pedaços de madeira e preparou a carne, descobrindo um alimento excepcional. Em seguida, iniciou a árdua subida.

Se a descida foi desafiadora, a subida foi ainda pior. Trouxe um pouco da carne de caça, não muito, mas o suficiente para compartilhar com seus companheiros de tribo, enchendo-os de entusiasmo com suas palavras e o sabor da carne.

"Não devemos permanecer aqui. Os pequenos pássaros ao nosso redor são de pouca utilidade. Lá embaixo, na terra que Okonorote encontrou para os Warrau, teremos uma abundância de animais para nos alimentar! Vamos!"

Assim, desceram pela escada para este mundo inferior. Naquela época, todos eram jovens, não havia idosos. Os bebês foram cuidadosamente carregados, e todos desceram em segurança, exceto a última, uma mulher robusta que ficou presa no buraco pelo qual os outros tinham descido.

Seu marido, ao vê-la em apuros, subiu para ajudá-la, mas não conseguiu passar. Ele ficou tonto e desceu novamente, encontrando seus companheiros de tribo em grande agitação, discutindo o infortúnio. Todos perguntavam como aquilo tinha ocorrido. Ele também não podia explicar. Assim, a situação permaneceu um enigma para os Warrau.

Então, as mulheres, repreendendo, perguntaram: "Está certo o homem descer e não ficar lá em cima a noite toda? E o valente Okonorote, que já subiu uma vez, por que não sobe agora com um ou dois homens, já que o marido desistiu completamente?"

Todos hesitaram diante da tarefa, pois um homem sábio alertou:

"Suponha que a alcancem e consigam puxá-la através. Isso não os levaria à morte? Ela sairá com tanta força que vocês não conseguirão segurá-la. Serão arremessados para baixo, e teríamos perdido nossos melhores homens!"

Assim, a mulher permaneceu no topo, e a escada se rompeu. Ela permanece lá em cima para sempre, preenchendo o buraco, e nunca mais podemos olhar para o céu. O enigma persistiu, inatingível para os Warrau.

2. Korobona

Na terra dos Warrau, existia um lago claro e tranquilo, cujas águas eram estritamente proibidas para banho. Um dia, duas jovens Warrau, cantando descendo das colinas, se aproximaram das águas, ignorando o aviso de seus irmãos: "Cuidado, o lago é perigoso, não se banhem lá!"

A mais velha das duas irmãs, a bela Korobona, desafiou: "Por que devemos ser detidas por uma ameaça vazia desta água clara? Vamos, minha irmã, nade comigo. O que pode nos acontecer? Estamos sozinhas, as pessoas, jovens e velhas, obedecem supersticiosamente à proibição. Ninguém vai nos incomodar."

Elas saltaram e começaram a nadar alegremente na água pura e clara. A mais velha nadava destemidamente à frente, a outra a seguia.

De repente, Korobona viu um pedaço de madeira emergindo da água. Descuidada, ela a sacudiu. Nesse momento, uma figura masculina emergiu, agarrou Korobona e a segurou firmemente.

Era um espírito da água, enfeitiçado ali, até que alguém, nadando no lago, se atrevesse a mexer na madeira. "Garota Warrau", disse ele, "sua irmã pode ir! Mas você, bela mulher, pertence a mim. Você deve ir comigo para minha aldeia!"

A pobre Korobona chorou em aldeia, no seio de sua irmã. Seu único consolo era que seus quatro irmãos não sabiam por que ela estava tão triste.

O tempo passou. Ela se tornou mãe. E seus irmãos juraram matar a criança.

"Não matem minha filha!", gritou Korobona. "Matem-me, porque fui imprudente! Minha filha será uma jovem gentil e lhes servirá amorosamente. Poupem a criança indefesa!"

Os irmãos se comoveram com seu pedido e deixaram a criança sob seus cuidados, pois a amavam, apesar de ela ter lhes causado tristeza.

Enquanto isso, o espírito da água passava seu tempo à beira do lago. Podia ser visto deslizando de árvore em árvore como uma serpente gigante. Ou ficava na forma humana sob os galhos verdes, onde a suave ondulação da água fazia a areia se mover. Às vezes, era um homem acima e uma serpente abaixo. As pessoas se perguntavam: "A mão daquele que pode resistir ao poder deste monstro terrível a quem pertence? Quem pode conhecer sua natureza?”

Korobona ouvia essas histórias sobre ele, que enchiam seus pensamentos. Ela não prestou atenção aos apelos de sua irmã. Escapuliu até o lago, determinada a descobrir a verdade.

Ela esperou muito tempo sob as árvores, cheia de medo e uma estranha esperança, enquanto ele, percebendo-a, se esquivava de seus olhares na forma de serpente e ainda se aproximava dela. Sua cabeça parecia uma semente flutuante, soprada pelo vento sobre a água. A cauda se assemelhava à espuma da pele. Nada mais podia ser visto dele.

Korobona se inclinou para observar essa semente flutuante. Então ele gritou triunfante: "Você é minha! Aceite seu destino!" e a agarrou novamente.

A infeliz Korobona agora vivia sozinha na floresta e escondia ali seu segundo filho. Ela sabia que sangue seria derramado se seus irmãos descobrissem sua culpa. Ela chorou muito, pois pressentia a desgraça, e sua maior angústia era o belo menino, que tinha parte da forma de seu pai. No dia de seu nascimento, ela tentou fugir primeiro. Mas logo voltou à clareira escondida, onde a criança indefesa estava, que a chamava com seu choro fraco. Sua irmã, chorando fielmente com ela, guardou seu segredo.

Um dia, alguém que passava ouviu o choro da criança e a descobriu. Ele contou aos irmãos dela, que estavam caçando nas proximidades. Logo, viram os quatro aparecerem, selvagens de vergonha e vingança.

Dois deles arrastaram sua irmã para aldeia, enquanto dois se voltaram para matar a criança indefesa, que estava deitada diante deles, impotente. Eles a atingiram com uma flecha e a deixaram onde jazia.

"A criança está morta", disseram eles. "Não se importem com a mãe insana!" Deixaram-na ir preparar seu túmulo. Mal sabiam eles que o cuidado que ela teve trouxe o infeliz menino de volta à vida.

Ele cresceu mental e fisicamente muito mais rápido do que as outras crianças. Ele se escondeu em uma árvore oca, longe de todos os olhares, até que viu a forma de sua mãe se aproximar. Ela ia diariamente à floresta e lhe trazia comida, conversava com seu filho e esquecia suas preocupações.

Mas ela não percebeu que suas pegadas poderiam revelar seu caminho. Assim, os irmãos descobriram seu segredo e prepararam flechas e arcos.

"Para que vocês estão fazendo essas flechas?", perguntou ela. "O que pretendem fazer com essas armas?" Os irmãos deram-lhe uma resposta curta. Então ela fugiu para a floresta, e os irmãos correram para persegui-la.

"Me esconda, mãe, dos olhos deles!" gritou a infeliz vítima. "Por que você me deu a vida? Eu não tenho lugar na Terra e agora devo morrer em breve!”

A mãe se agarrou ao seu filho e o protegeu com seu corpo dos seus inimigos. Eles tinham pouco espaço para mirar, mas de seus arcos infalíveis cada flecha o atingiu. Eles o cortaram em pedaços. Korobona amaldiçoou a crueldade deles: "Vocês, assassinos vis dessa criança inocente! A desgraça que temem agora virá sobre vocês, mas através de vocês, não por minha causa! Veja aqui Korobona deitada! Este local será o túmulo dela, este local coberto pelo pobre sangue! Lembrem-se disso quando a desgraça vier sobre vocês e os Warrau caírem no destino deles!”

Korobona ficou para trás na floresta e vigiou seu filho morto. Ela empilhou folhas verdes largas e flores vermelhas sobre o corpo despedaçado. E o local manchado de sangue permaneceu doce e perfumado. Abutres e animais selvagens o mantiveram afastado. A criança-serpente não se decompôs.

Depois de algum tempo, o monte coberto de flores começou a se erguer. Ela ouviu as palavras: "Seu filho agora vingará o assassinato que lhe foi cometido. Minha mãe, pare de chorar!”

Primeiro, uma cabeça e ombros se ergueram lentamente do monte, depois ela viu a figura imponente inteira emergindo com membros completos e saudáveis, bem armado para encher todos os inimigos de terror. Com um porrete pesado, o guerreiro ficou ali, com arco e flechas. Penas brancas enfeitavam seu curto cabelo negro. Sua pele brilhava como cobre, mais clara do que a dos Warrau. Suas bochechas e sobrancelhas estavam pintadas de vermelho, tal como sangue. Assim, ergueu-se sombrio o primeiro Karaiwa, um guerreiro forte, para bater seus inimigos, um terror para cada Warrau. Os quatro irmãos empalideceram ao vê-lo e chamaram seus guerreiros. Mas poucos se atreveram a enfrentá-lo com seu porrete, e aqueles que ousaram, ele matou. Os restantes fugiram. Nenhum Warrau podia resistir a ele; suas flechas não o atingiam. Os guerreiros fugiram para salvar suas vidas. Suas esposas ele tomou, e toda a sua propriedade tornou-se sua presa.

Seus filhos se multiplicaram e tomaram o lugar dos Warrau.

Eles são invencíveis, pois são de origem sobrenatural, embora pertençam aos Warrau, uma tribo que eles desprezam, por meio de sua mãe.

3. O sol, o sapo e a lenha

Era um tempo antigo, e um ancião chamado Nahakoboni, que em tradução literal significava "aquele que come muito", não tinha a dádiva de uma filha. Nos recônditos de sua mente, as preocupações de sua velhice começavam a se agitar. Ele carecia de um genro para zelar por ele, como era comum entre os mais idosos. Decidiu, então, esculpir para si uma filha a partir de um tronco de ameixa. Por sua perícia nas artes da feitiçaria, moldou habilmente a madeira de modo que, ao finalizar sua obra, uma formosa mulher emergiu. Ela foi batizada como Usi-diu, e seus atributos físicos eram quase perfeitos, mas não completamente. Sua beleza era tal que criaturas de todos os cantos - animais, aves e quadrúpedes - vinham de longe para cortejá-la. No entanto, nenhum deles era aprovado pelo ancião, que rejeitava abruptamente suas pretensões. Seus genros em potencial não alcançavam seu padrão, e ele desdenhava suas habilidades.

Foi então que Yar, o Sol, suspendeu sua jornada para visitar o ancião. As intenções de Yar ficaram evidentes e, em pouco tempo, ele teve a comprovação de que sua proposta seria bem recebida.

Nahakoboni desejava avaliar as habilidades de Yar. Ordenou-lhe que o alimentasse e trouxesse toda a carne seca que ele havia trazido em sua jornada e deixado à margem da floresta. Yar se alimentou abundantemente, como era de se esperar de acordo com seu nome, e deixou apenas um quarto da carne para seu anfitrião. Então, pediu-lhe para trazer água para beber, e Yar esvaziou um grande jarro em sua garganta.

A próxima tarefa foi trazer água para um banho, equipado apenas com um coador. Todavia, quando o jovem mergulhou o coador no reservatório e o retirou, a água escorreu. Ele tentou muitas vezes, mas a água sempre escapava. Foi então que ouviu um ruído na floresta e avistou um Hebu, um espírito da floresta, se aproximando. Ao saber do problema, o espírito ofereceu ajuda, fazendo com que a água permanecesse retida no coador. Yar levou a água ao futuro sogro e a utilizou para o banho.

O ancião então ordenou que Yar pescasse peixes para ele. Encontraria um barco à beira do rio, um banco sob as raízes de uma árvore específica e uma flecha na sombra de outra árvore. Certamente, encontrou o barco submerso, pesado, mas com determinação conseguiu içá-lo e esvaziá-lo. Ao se aproximar da árvore indicada e buscar entre as raízes, surpreendeu-se ao encontrar um jacaré. Contudo, segurou-o pelo pescoço e este se transformou em um banco, encaixando-se no barco. Na sombra da outra árvore, uma grande cobra apareceu. Ele a pegou pelo pescoço e ela se transformou em uma flecha de pesca.

O ancião se juntou a ele e entraram no barco, remando rio abaixo. "Desejo pegar peixes Kwabaihi," disse o ancião, "mas você não deve olhar para a água. Atire no ar!" Yar obedeceu e, habilidoso com o arco, a flecha perfurou e matou o peixe. Era uma criatura tão imensa que o barco quase afundou ao puxá-la para cima. Ainda assim, conseguiram levá-la para aldeia.

O ancião estava agora convencido da habilidade de Yar e concedeu-lhe sua filha, Usi-diu, em casamento. Na manhã seguinte, o jovem casal partiu para caçar na floresta. Ao retornarem, tarde da tarde, pai e filha tiveram uma longa e séria conversa, onde o ancião percebeu que a obra-prima que esculpira pacientemente, com sua habilidade e compreensão, não era completamente perfeita. Seu genro tinha suas críticas. No dia seguinte, a caça foi repetida. Novamente, no final da tarde, outra conversa revelou que o erro mencionado persistia. O pai confuso só pôde garantir à filha que não podia fazer mais nada para torná-la agradável ao marido. Quando este ouviu isso, consultou uma ave Bunia para obter conselhos e a trouxe para maloca no dia seguinte.

Enquanto a jovem acariciava e alimentava a ave em seu colo, o pássaro trapaceiro aproveitou a oportunidade para atacar sua inocência, em seguida voando para longe. Quando esta violência foi revelada ao pai, ele decidiu submeter sua filha a mais um teste e conseguiu extrair uma cobra dela. A dificuldade foi agora resolvida, e a jovem se dirigiu novamente ao marido. Na tarde seguinte, pai e filha se encontraram novamente para uma conversa íntima. Agora ela estava feliz! Seu marido estava satisfeito e não tinha mais críticas.

No entanto, apesar de seu disfarce, o ancião nutria uma raiva latente em relação ao genro, não apenas porque este estava insatisfeito com a escultura quando a recebeu, mas também porque permitiu que o pássaro Bunia interferisse. Ele esperou o momento certo, adiando sua vingança até que o jovem completasse as tarefas usuais do casamento: derrubar uma plantação e construir uma maloca para ele. Não demorou muito para que Yar começasse a derrubar a plantação. Ele trabalhou desde cedo até tarde e finalmente pediu à esposa que avisasse ao pai que ele poderia inspecionar o campo. O ancião foi para lá e, ao voltar, disse à filha que não estava satisfeito. Então, o jovem casal foi plantar e ficaram surpresos ao ver todas as árvores e arbustos crescendo novamente de maneira exuberante. Eles não tinham ideia de que Nahakoboni havia causado esse rápido crescimento na noite anterior através de seus meios mágicos.

Yar teve que derrubar outro campo, ainda maior, e novamente a mesma coisa aconteceu. O ancião expressou sua insatisfação mais uma vez. "Como isso é possível?" disse Yar à sua esposa. "Agora eu bati no campo duas vezes e ainda assim o ancião não está satisfeito." Ela então o aconselhou a bater em um terceiro campo e, desta vez, arrancar todos os tocos de árvores com as raízes. Depois de bater o terceiro campo, começou a arrancar os tocos de árvores. Tentou muitas vezes, mas não conseguiu arrancar um. Exausto, ele caiu. Foi então que seu amigo, o espírito da floresta, apareceu e se ofereceu para fazer o trabalho para ele. Ele o instruiu a voltar para maloca imediatamente e dizer à sua esposa que o campo estava agora completamente limpo. Nahakoboni foi lá na manhã seguinte e plantou o campo com mandioca, bananas e todas as outras plantas úteis. Ele voltou à noite, mas não disse uma palavra. Isso deixou Yar desconfiado. Ele levantou cedo na manhã seguinte e ficou muito surpreso ao encontrar uma rica colheita de mandioca madura, bananas e todas as outras iguarias que seu estômago desejava, em vez de um campo vazio.

A raiva, no entanto, ainda fervia no coração do ancião. Quando seu genro concluiu sua outra tarefa, a construção da casa, ele encontrou mais motivos para insatisfação. Derrubou a maloca e disse que desejava uma construção mais sólida. Yar construiu a maloca com a madeira mais resistente que pôde encontrar. Finalmente, Nahakoboni ficou satisfeito, mudou-se para a maloca e passou a viver lá.

Yar, o Sol, agora estava livre para cuidar de seus afazeres domésticos, e, estando satisfeito com sua esposa, eles viveram muito felizes juntos. Um dia ele disse a ela que queria fazer uma viagem para o oeste. Sua esposa, que agora estava grávida, provavelmente não conseguiria acompanhá-lo; portanto, deveria viajar devagar. Ele queria sair primeiro e ela deveria seguir seus rastros. Ela deveria sempre seguir o caminho certo; ele queria espalhar penas à esquerda para que ela não cometesse um erro. Portanto, na manhã seguinte, quando iniciou a viagem, não teve dificuldade em encontrar o caminho. Ela evitou as penas até chegar a um lugar onde o vento as havia levado embora. Foi aí que o problema dela começou. O que ela deveria fazer agora que estava perdida? A maternidade acabou sendo sua salvação, pois seu filho ainda não nascido começou a falar e disse-lhe que caminho seguir. À medida que ela avançava, seu filho a orientava. Chegou o momento em que ele lhe disse para escolher as lindas flores que desabrochavam aqui e ali ao longo do caminho. Ela colheu algumas vermelhas e amarelas, mas uma vespa picou seu corpo. Ao tentar matar a vespa, errou e a acertou. O nascituro interpretou erroneamente e pensou que tinha sido atingido. Ficou com raiva e recusou-se a dar instruções à mãe por mais tempo. O resultado foi que a pobre mulher ficou irremediavelmente perdida.

Mais morta do que viva, ela finalmente chegou a uma maloca muito grande onde vivia Nanyobo, um grande sapo. Eles se cumprimentaram e a visitante foi perguntada de onde era. Ela explicou que estava em busca do marido, o Sol, que havia se perdido e agora estava exausta. Nanyobo então a acolheu e deu-lhe algo para comer e beber, pedindo-lhe para se sentar. Posteriormente, ela agachou-se no chão à sua frente e pediu que ela removesse os piolhos. "Mas tome cuidado", advertiu a velha, "não coloque os piolhos na boca, ou irão te envenenar!" No entanto, a mulher, tomada pelo cansaço e pelo medo, esqueceu o aviso, pegou um piolho e o enfiou entre os dentes. Mal havia feito isso quando caiu morta.

Nanyobo abriu seu corpo e não encontrou uma criança, mas duas, dois belos meninos, Makunaima e Pia. Nanyobo provou ser uma mãe adotiva dedicada e cuidou bem deles. À medida que as crianças cresciam, começaram a caçar pássaros. Quando cresceram mais um pouco, desceram até o rio e pescaram peixes. Cada vez que pescavam, a velha dizia: “Vocês devem secar o peixe ao sol e nunca no fogo!” Mas era estranho que a velha sempre os mandasse buscar lenha, e quando voltavam com ela , os peixes já estavam bem cozidos e prontos para eles. Na verdade, a velha cuspia fogo pela boca, cozinhando a comida e lambendo o fogo antes que os meninos voltassem. Ela nunca os deixou ver um fogo queimar. À medida que isso se repetia dia após dia, os meninos ficaram desconfiados. Não conseguiam imaginar como a velha acendia o fogo, então decidiram descobrir. Na ocasião seguinte, quando foram novamente buscar lenha, um deles, a uma distância segura da casa, transformou-se em lagarto, correu de volta e subiu no telhado, de onde podia ver tudo o que se passava atento. “O que ele viu agora?” Ele não apenas viu a velha vomitando fogo, usando-o e lambendo-o, mas também a viu coçando a nuca, e então saiu algo parecido com leite balata, com o qual ela fez amido. Satisfeito com o que viu, desceu e correu para o irmão. Eles discutiram o assunto detalhadamente e disseram: “O que a velha está fazendo não é bom. Vamos matar a velha!” E eles o fizeram. Limparam um grande campo e deixaram uma bela árvore no centro, à qual amarraram a velha. Os meninos a cercaram com lascas de madeira por todos os lados e atearam fogo. Conforme a velha era consumida pelas chamas, o fogo que estava dentro dela passou para o arroz que a cercava. Descobriu-se que esses descendentes eram da madeira Hima-heru, e ainda hoje é possível obter fogo esfregando duas dessas madeiras.

4. Porque a onça preta mata pessoas

Na densa selva, um dia rotineiro foi interrompido por um evento peculiar. Tobe-horoanna, a onça-preta, habilidosa e perspicaz, capturou um jovem que vagava pela floresta. Arrastou-o para sua guarida, como se tecesse um enredo sombrio, e proclamou com uma serenidade perturbadora: "Você não precisa temer. Não tenho a intenção de ceifar sua vida, cozinhá-lo e saciar-me de sua carne. Permanecerá vivo."

Os irmãos da onça-preta, criaturas intrínsecas ao manto de mistério que envolvia aquela selva, retornaram ao lar. Curiosos e famintos por novidades, interrogaram: "Ouvimos rumores de que capturou um rapaz. Onde ele se encontra?" "Na panela", respondeu Tobe-horoanna, enigmática. "Já o alimentou?" inquiriram em sequência, prontos para o julgamento. Diante da negativa, pronunciaram com inabalável determinação: "Bem, ofereça-lhe um porco-do-mato, e se ele não o consumir por completo, o eliminaremos."

O jovem, diante da situação, foi acometido por um tremor interno ao ouvir tais palavras. Quando o porco-do-mato foi-lhe apresentado, ele se esforçou para cumprir a tarefa de degustá-lo, depois de subjugar as duas pernas traseiras, mas seu estômago não estava à altura. Foi então que Tobe-horoanna, como uma sacerdotisa de uma cerimônia arcaica, surgiu com uma cuia de kashiri, determinando que o ingerisse. O pobre homem argumentou que seu estômago já estava repleto e não suportava mais líquido. No entanto, diante da insistência dos três, engoliu o kashiri, apenas para ser compelido, quase instantaneamente, a expelir tudo novamente. "Ah, o que você está fazendo?", sibilou a onça-preta. Algo em sua percepção denunciava uma estranheza na boca do homem. Então, ordenou a seu irmão que escancarasse a boca do sujeito, enquanto despejava mais kashiri. Entretanto, a irmã, enfeitiçada pela presença humana, desejava compartilhar sua existência. Suplicou aos irmãos que deixassem o homem em paz. Libertaram-no e o conduziram à selva para caçar, como prova de sua capacidade de prover para uma mulher.

Ao retornar da mata, ele trazia consigo dez porcos-do-mato defumados, como troféus de uma proeza. Foi nesse momento que Tobe-horoanna exclamou, em um rito de avaliação: "Isso mesmo! Estou satisfeita. Pode manter a companhia de minha irmã."


Assim, o homem partilhou um longo período de sua existência com sua esposa-onça, e de sua união frutificou a chegada de filhos gêmeos. À medida que os rebentos cresciam e começavam a explorar o mundo que os rodeava, o pai dedicava-se aos cuidados, enquanto a mãe empreendia suas caçadas no campo. Repentinamente, os filhotes rugiram, emitindo um som que evocava Naharani, o trovão. Isso inquietou o homem, mas, ao regressar a mãe, ela tranquilizou-o, explicando que esse ruído não era sinônimo de ameaça; era o mesmo eco que o povo da tribo da onça-preta ouvia em suas travessias pela floresta.

Entrementes, a saudade da aldeia natal começou a ecoar em seu coração. Comunicou à esposa sua intenção de visitar sua mãe e sua irmã, e partiu em direção ao passado. Seu retorno à morada de outrora foi celebrado com grande júbilo! Julgavam-no perdido há tempos. Sua mãe indagou se tinha uma esposa, e, ao descobrir que não apenas tinha uma consorte, mas também dois filhos que vocalizavam rosnados singulares, solicitou-lhe que os trouxesse na próxima visita.

Não demorou a cumprir essa promessa, e, ao chegar à aldeia materna, encontrou-se inserido em uma festividade regada a bebidas. A anciã, sob o véu da embriaguez, perdeu o controle da língua. Censurou o filho por ter introduzido tal nora em sua casa, sustentando que esta não era uma genuína humana, mas uma onça que, eventualmente, o assaltaria e ceifaria sua vida. Inquiriu-lhe, enfurecida, se não sentia vergonha por trazer uma criatura daquela estirpe ao seu convívio, e assim desaguou sua ira etílica. Ela e sua filha, em um êxtase de fúria, arrebataram-lhe a vida. A esposa lutou para defendê-lo, mas também encontrou seu fim. Os filhos teriam seguido o mesmo destino se tivessem permanecido no cenário trágico, contudo, lograram escapar incólumes, retornando ao aconchego do lar.

O Tio Tobe-horoanna, o ser imponente e misterioso, indagou: "Onde está seu pai?" "Ele se foi!", responderam. "E sua mãe?" "Também se foi!", declararam. Ao assimilar toda a narrativa, o tio encheu-se de ira, transmutando-se em onça-preta. Rumou, feroz, ao local da tragédia, e investiu contra todos: mãe, filha e todos os convivas. O ciclo de violência, intrincado na teia da existência, prosseguia seu curso na vastidão sombria da selva.

5. A onça-preta, Wau-uta e a flecha quebrada

Houve uma época em que um homem possuía dois cunhados. Embora sua sorte fosse escassa, os dois regressavam ao lar pontualmente à tarde, trazendo presas valiosas consigo. Decidiram então: "Ele é um homem desafortunado. Queremos perdê-lo no caminho!" Almejavam livrar-se dele.

Certo dia, o conduziram à floresta. Os três caminharam juntos, mas logo instruíram-no a seguir por um lado enquanto eles trilhavam outro. Acordaram encontrar-se em um local específico.

A trilha indicada pelos dois irmãos maus levava ao território de Tobe-horoanna, uma imponente onça-preta, mas o homem estava alheio a tal fato. Prosseguiu, encontrando um caminho largo. Então exclamou: "Para onde devo ir agora?"

Enquanto se indagava, ouviu algo se aproximando com rapidez e se perguntou o que poderia ser. Não tardou para que descobrisse, pois avistou Tobe-horoanna se aproximando. E assim, correu o mais rápido possível em direção a uma gigantesca árvore, com a onça-preta em sua perseguição. Iniciaram uma frenética corrida ao redor do tronco, até que o homem alcançou as patas traseiras da fera e cortou-lhe as patas. A onça se assentou, incapaz de mais avanços. O homem então lançou a flecha em seu pescoço, completou a façanha com sua faca e retornou ao lar.

Enquanto isso, os dois cunhados nunca duvidaram que jamais o veriam novamente. Conheciam a inabilidade dele como caçador e para onde o tinham enviado. Por isso, ao vê-lo voltar, ficaram atônitos e, para disfarçar suas más intenções, desculparam-se, alegando: "Fomos ao local acordado, mas você não estava lá. Chamamos por você, mas não obtivemos resposta. Imaginamos que estivesse morto e partimos. Apenas desejávamos encontrá-lo novamente." Claro, tudo não passava de mentira.

Quando o homem afirmou que realmente havia derrotado Tobe-horoanna, seus dois cunhados e seu ancião pai mal puderam acreditar. Insistiam que os levasse até o local. Juntos, dirigiram-se até lá, e ao avistarem a onça-preta estendida no chão à certa distância, todos hesitaram em se aproximar, exceto aquele que a tinha abatido. Afirmou novamente que estava "totalmente morta", mas o temor ainda habitava seus dois cunhados. Assim, corajosamente, subiu e pisoteou a carcaça para demonstrar-lhes a verdade. Apenas então o ancião ousou aproximar-se, enquanto seus filhos continuaram receosos. Todos retornaram ao lar.

Após sua chegada, o velho sogro lhe concedeu outra filha como esposa, tornando-o esposo de duas mulheres.

Seus cunhados ergueram para ele uma casa mais ampla e, desde então, ele foi reconhecido como Ai-jamo, o líder da aldeia.

No entanto, nosso amigo não se contentava com a reputação que adquirira ao libertar a terra de Tobe-horoanna; ele ambicionava também o renome de exímio caçador, capaz de enfrentar todos os outros animais.

E a quem recorrer para conselhos senão a Wau-uta, a perereca?

Assim, vagou até encontrar a árvore onde Wau-uta residia. Ficou sob a árvore e pediu sua ajuda. Chamou e chamou até que a noite chegou, mas não obteve resposta. Mesmo assim, persistiu em invocar, suplicando para que ela lhe ensinasse todas as coisas que desejava aprender, e ao cair da noite, lágrimas inundaram seus olhos. Sabia muito bem que, assim como uma mulher que uma vez rejeitou um homem finalmente sente compaixão quando ouve seu choro, se chorasse por muito tempo, ela cederia.

Enquanto chorava sob a árvore, o que aconteceu? Um bando inteiro de pássaros, organizados com perfeição de acordo com o tamanho, do menor ao maior. A pequena Doroquara foi a primeira. Bicou os pés do homem com o bico, para que tivesse sucesso na caça. E assim, um após o outro, todos os outros pássaros vieram. Wau-uta começou a sentir pena, embora ele, é claro, não soubesse disso.

Quando todos os pássaros estavam prontos, surgiram os ratos, um por um, em ordem de tamanho. Na sequência, a cutia, a paca, o veado, o porco do mato e assim por diante, até a anta. Cada animal, ao passar, mostrou a língua, lambeu as patas e seguiu adiante. Com esse gesto, desejavam-lhe sorte em sua caça à sua própria espécie. Em seguida, vieram as onças da mesma forma, do menor para o maior. Todos realizaram a mesma ação e seguiram adiante. Por fim, as cobras apareceram, procedendo como as outras, e rastejaram à frente.

Claro, essa marcha tomou seu tempo. Não se concluiu até o clarear do dia. Foi então que o homem, por fim, cessou suas lágrimas. Sob a luz da aurora, avistou alguém se aproximando. Era Wau-uta, portando uma flecha de aparência peculiar. "Então foi você que fez barulho a noite toda e não me deixou dormir?", indagou. "Sim", respondeu o homem, "fui eu." "Bem", disse Wau-uta, "olhe para baixo em seu braço, daquele ombro à mão!" Ao fazer isso, percebeu que todo o seu braço estava revestido de esponja. O outro braço não diferia. Era essa esponja que sempre lhe trazia infortúnio. Rapidamente, passou a esfregá-la.

A flecha de Wau-uta tinha uma aparência peculiar. Estava dividida em três ou quatro partes, posteriormente remontadas. Wau-uta entregou-a ao homem e recebeu sua flecha em troca. Instruiu-o a encaixar a flecha em seu arco e disparar contra uma videira fina que pendia distante. A flecha acertou seu alvo.

Ela então colocou a flecha no arco e o instruiu a atirar para o alto. Qualquer direção em que a flecha fosse disparada, ao tocar o solo, atingia algo: primeiro um Doroquara e, seguindo a ordem em que os pássaros bicavam seus pés, cada espécie de ave até o Hokko.

Ele não via nada quando disparava a flecha. Continuou a atirar para o alto em todas as direções, descobrindo que havia atingido um rato, uma cutia e assim por diante, até que uma magnífica anta sucumbiu à sua flecha. Posteriormente, alvejou onças e cobras.

Quando tudo isso terminou, Wau-uta disse que poderia ficar com a flecha quebrada, contanto que nunca revelasse que ela o havia ensinado a atirar tão bem. Então, separaram-se. Nosso amigo retornou ao lar, a suas duas esposas. Sua grelha sempre estava cheia e logo sua reputação como caçador feliz rivalizava com sua fama de matador de Tobe-horoanna. Todos se esforçavam para descobrir o segredo de seu sucesso. Perguntavam-lhe repetidamente, mas ele se recusava a responder. Aguardaram, persuadindo-o a participar de um grandioso festival Paiwari. Na velha canção: “A bebida trouxe desventura; ela afrouxou a língua”. Então, ele contou toda a história sobre o que ocorreu.

Ao despertar na manhã seguinte, foi buscar sua flecha, a flecha que Wau-uta lhe concedera, mas a encontrou substituída por sua própria flecha, aquela que dera em troca para Wau-uta.

A partir desse momento, perdeu toda sua alegria.

[Em progresso...]

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