Pular para o conteúdo principal

Talvez você goste

Hipótese da Representação de Platão e Modelos de Inteligência Artificial (IA)

Nos bastidores da acirrada competição no avanço das tecnologias baseadas em inteligência artificial, um fenômeno intrigante está ocorrendo enquanto os pesquisadores aprimoram suas técnicas, bem como seus modelos de aprendizado, tal como ocorre no desenvolvimento dos grandes modelos de linguagens (LLM) como o ChatGPT e entre outros. Trata-se da convergência das representações de aprendizado em diferentes modalidades de dados . Em meio ao caos dessa corrida, pesquisadores* do MIT apresentaram a Hipótese da Representação Platônica , que busca iluminar esse curioso processo e suas implicações em busca de um melhor entendimento da inteligência artificial e da própria natureza do que denominamos "realidade". * Minyoung Huh, Brian Cheung, Tongzhou Wang e Philip Isola. Hipótese da Representação Platônica em IA Platão, em seu famoso "Mito da Caverna", apresenta prisioneiros acorrentados que apenas veem sombras projetadas na parede, tomando-as como a única realidade. Ao serem

A Morte da Cachorra Baleia em Vidas Secas

Eis, neste escrito, uma breve transcrição das páginas de "Vidas Secas", obra primorosa de Graciliano Ramos, onde se retrata o derradeiro suspiro da infortunada Baleia.



O nono capítulo de "Vidas Secas" (1938), de Graciliano Ramos, em que o narrador descreve a morte da cachorra Baleia, e é certamente o capítulo mais lido e lembrado em toda a obra do escritor alagoano (falo por mim :D). 

Com papel revestido em humanidade que transcende a própria sensibilidade humana, Baleia se destaca dentre todos os personagens por seus sentimentos cristalinos e profundos. 

A cena em questão decorre a partir da suspeita de que Baleia sofre de Hidrofobia (também conhecida como "Raiva"), e portanto, Fabiano decide sacrificá-la, enquanto Sinhá Vitória leva os dois meninos para dentro de casa e tenta lhes tapar os ouvidos e lhes poupar da tragédia que segue. 

Separe o lenço e segure o coração, pois a descrição da cena é antológica:



[...] Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, sinha Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis. (…)
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinha Vitória guardava o cachimbo. (…)

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.



 Referências

( 1 ) RAMOS, Graciliano Vidas Secas, Record, 74ª edição, 1998


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas